Datilografobia

Por acaso você já ouviu esse nome ou alguma coisa parecida? Analisando etimologicamente a palavra, pelos radicais, podemos entender que seria o medo de datilografar, logicamente com os dedos.

Na verdade, nem sei se esse nome está correto ou se essa fobia já foi identificada pela Psicanálise! Todavia, atribuímos essa mania a um colega, piloto, muito engraçado, chamado Vandir e que conheci na Marinha Mercante.

Ele tinha uma verdadeira aversão e total ojeriza a datilografar – uma atividade primordial para os oficiais de convés, mormente para o Primeiro Piloto.

Eu estava embarcado de primeiro e Vandir de Segundo Piloto, no navio Amaralina. Nessa condição, ele podia manter-se afastado da máquina de datilografia, posto que seus trabalhos e os poucos relatórios eram batidos, ora por mim, ora pelo nosso radiotelegrafista.

Vandir nos agradecia muito pelo grande favor que prestávamos e afirmava que tinha uma grande compulsão nervosa, se ao menos tentasse datilografar algum texto. Quando criava coragem, catava milho aos extremos, tinha ataques nervosos e brigava com as letras, mas sequer terminava uma frase. Seu caso era sério mesmo; só Freud explica… Sentia-se aliviado quando fazíamos o seu serviço. Normalmente, passava longe das máquinas de escrever e tampouco suportava o barulho de alguém datilografando.

Nosso amigo Vandir, protagonista desse caso pitoresco, sempre usava uma expressão marinheira e costumava dizer que no dia em que fosse promovido a Primeiro Piloto, cujo serviço é demasiadamente sobrecarregado em datilografar, ele iria “junto com a retinida na primeira atracação”.

Retinida nada mais é do que aquele cabo fino, guiado por uma pinha, ( bola pesada ) que o marinheiro joga para o cais e serve de guia para os cabos de amarração. Portanto, a expressão marinheira “ir com a retinida” significa desembarcar logo na chegada do navio.

Realmente, ele temia ser promovido, pois teria que encarar o maior desafio da vida, que seria datilografar textos, termos, listas e toda sorte de documentos.

O navio regressou ao Brasil, com escala no Rio de Janeiro. A empresa substituiu muitos tripulantes, inclusive o comando. Parece que foi combinado uma conspiração contra o Vandir, haja vista que quatro grandes bombas caíram sobre sua cabeça, a saber:

1ª Bomba – Eu tive que desembarcar do navio;

2ª Bomba – O Vandir foi promovido para Primeiro Piloto (a pior de todas);

3ª Bomba – O radiotelegrafista, que cooperava bastante, desembarcou;

4ª Bomba – O Comandante substituto era extremamente rigoroso com a ortografia nos ofícios, textos, listas, termos e outros documentos.

Com essas quatro bombas, o Vandir já podia prever que sua vida não seria nada fácil e que nos dias seguintes, provavelmente, seria crucificado pelo comando.

De fato, nosso amigo Vandir – agora Primeiro Piloto – não podia se sentir bem com aquela promoção, pois a partir de então, era ele, e somente ele, quem deveria bater as listas das visitas, dos despachos, os textos, os termos, os ofícios. E nosso pobre Vandir estava condenado a viver, a contragosto, debruçado sobre uma máquina de escrever.

Assim, Vandir, quando se viu sozinho, em total desespero para despachar o navio na saida do Rio de Janeiro, partiu para a rua, levando em mãos alguns modelos em branco e diversas cópias de documentos. Encontrou uma escola de datilografia e pagou uma funcionária para datilografar todos os modelos referentes ao complicado despacho de um navio. Contudo, ocorreu um transtorno, pois Vandir havia utilizado uma lista de tripulantes que não estava totalmente atualizada. Com isso, o representante da agência local foi obrigado a resolver esse problema no próprio balcão da capitania e com as demais autoridades. O pobre Vandir, por este fato, já ficou visado pelo Comandante.

Por ocasião da manobra de saída do Rio de Janeiro com destino ao Porto do Rio Grande, partiram-se dois cabos de amarração e o Comandante, imediatamente, mandou que Vandir fizesse um termo de ocorrência e datilografasse o documento para enviá-lo aos armadores via postal. Aquela ordem soou para Vandir como uma condenação total.

Normalmente, um piloto cumpre essa tarefa em 10 ou 15 minutos, mas para Vandir parecia uma eternidade. Em compensação, a seu favor ele tinha três longos dias para concluir o termo, já que o documento seria postado após a chegada no porto de destino.

No dia seguinte, Vandir tomou um café reforçado, tomou coragem, pegou cinco daquelas folhas finas e entre cada uma delas colocou o papel carbono, demorou algum tempo para ajustar o papel na máquina e começou a catar seu milho com o dedo indicador, cuja unha estava suja e quase toda roída.

No alto da folha, ele deveria escrever Termo de Ocorrências e sublinhar a frase, mas com todo nervosismo e somando com falta de aptidão, escreveu: “termo de ocorrência” e percebeu que a palavra termo estava em letras minúsculas. Em outro jogo de folhas, tentou escrever: “Termo de coerência” trocando as letras, errando mais uma vez. Em seguida, tentou novamente e escreveu “Termo de ocurência”. Ao constatar o novo erro, levantou-se e foi tomar um calmante.

Mais de uma hora depois, Vandir ainda não havia iniciado o termo. Empacou no título. A seu redor, já podia ser vista uma enorme montoeira de papéis amassados, juntamente com papel carbono. Vandir protagonizava o quadro de um cenário cômico e trágico ao mesmo tempo. Todo cercado de folhas amassadas, testemunhando que ele realmente não tinha jeito para aquela atividade.

Em seguida, passa em frente a seu camarote o novo radiotelegrafista, Aloísio Jacaré que, ao assistir àquela cena, perguntou se Vandir estava com alguma dificuldade. Nosso protagonista não hesitou em contar sua fobia.

Aloísio Jacaré prontificou-se a ajudá-lo, lendo o texto da minuta, mas para Vandir, não adiantava ler frases e, sim, ditar as letras, ou seja, ditar letra por letra. Com muita camaradagem, assim foi feito e Vandir começou a bater o termo de ocorrência, letra por letra, com muita dificuldade e com muito cuidado para não errar uma vírgula sequer.

Como Vandir também cumpria serviços de quarto de navegação, a missão de bater o termo de ocorrência, ao longo dos três dias de viagem, sofreu diversas paralisações.

Vandir saía do quarto de navegação e sentava-se à máquina para continuar o termo, batendo letra por letra, com uma atenção redobrada, sempre assistido pelo Jacaré. Pouco dormia, alimentava-se mal, cumpria rápidas refeições, concentrando-se exclusivamente no termo de ocorrência. E o Aloísio Jacaré, que ajudava o amigo lendo letra por letra, preparou separadamente toda a papelada de chegada em Rio Grande.

Finalmente, passados os três dias, já com o navio na Barra de Rio Grande, Vandir conclui o termo. Tira os papéis da máquina com muito cuidado, toma um banho completo, coloca o uniforme, faz a barba e se prepara para levar o termo de ocorrências ortograficamente perfeito e bem datilografado à apreciação do Comandante.

Ao apresentar o termo de ocorrência ao Capitão, este último apreciou todo o documento e comentou:

O termo está muito bom, mas observe aqui no final.

O que tem o final? – Perguntou Vandir.

Veja o nome do Comandante.

O que tem o nome do Comandante? – Perguntou Vandir.

Meu nome é Agenor de Mattos Carillho e você, por engano, bateu Agenor de Mattos Carvalho.

Aquelas palavras caíram como outra bomba na cabeça do Vandir. Por alguns segundos, passou em sua mente todo o sacrifício e todo drama de datilografar aquele termo durante os três dias de viagem. Entretanto, Vandir se conteve e calmamente respondeu:

Comandante, é apenas um detalhe!

Como um detalhe? Meu nome está errado! Insistiu o Comandante.

Comandante, o senhor não tem ideia do sacrifício que tivemos para bater este termo de ocorrência.

Tenho ideia, sim, mas não posso assinar e peço que você bata outro termo antes da atracação do navio.

Bater outro termo? – Protestou Vandir, indignado.

Positivo. Bater outro termo. – Confirmou o Comandante.

Naquele momento, Vandir perdeu a razão e as estribeiras, e secamente replicou:

Comandante, é mais fácil o senhor ir ao cartório e mudar seu nome do que me fazer bater outro termo.

O Comandante, um rigor ortográfico em pessoa, apenas deu um leve sorriso e não mencionou uma palavra sequer. Como se diz na linguagem marinheira, logo após a atracação em Rio Grande, foram-se a retinida e o Vandir.

Tempos depois, soubemos do Vandir, que chegou até se consultar com um analista famoso. Também soubemos que ele, com muito custo, matriculou-se em uma escola de datilografia.

Francisco Cesar Monteiro Gondar

  • Capitão de Longo Curso;

  • Comodoro da Marinha Mercante Brasileira, com 43 anos de vida marítima, sendo 30 anos na função de comando;

  • Embaixador da IMO – ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL no Brasil;

  • Doutor em Ciências Navais pela Escola de Guerra Naval;

  • Pertence ao Corpo Diplomático Mundial de Segurança e Paz como Embaixador Humanitário da Paz do WPO: Word Parlament Of Security and Peace;

  • Completou 2.534.759 milhas navegadas em 9.382 dias.

Nome:

AMARALINA

Tipo:

Navio mercante a motor (Classe B444)

Nº IMO:

7006845

Porte Bruto:

12.241 t

Arqueação Bruta:

10.416

Arqueação Líquida:

5.790

Construção:

1970 – Stocznia Gdansk Im Lenina, Gdansk, Polônia

Casco:

B444/01

Armador:

Companhia de Navegação Marítima Netumar, Rio de Janeiro, Brasil

Porto de Registro:

Rio de Janeiro

Prefixo:

PPDJ

Comprimento:

161,02 m

Boca:

22,99 m

Pontal:

13,31 m

Calado:

9,72 m

Motorização:

Um motor diesel Sulzer 6RND90; 2T SA; 6 cilindros (900 x 1.550). Zaklady Przemyslu Metalowego “H. Cegielski”, Poznan, Polônia

Potência:

17.400 BHP

Hélice(s):

1

Velocidade:

20,5 nós

Consumo:

64 t/dia

Combustível:

1.458 m3

Tripulantes:

29

Passageiros:

0

Derrota:

Longo Curso

Porões:

5, com paus de carga de 1 x 60 t; 1 x 30 t; 16 x 5 t

Carga:

Carga a granel: 20.609 m³, Carga geral: 19.688 m³, Carga frigorífica: 1.677 m³, 152 TEU

História do Navio:

Em 1970 é batida a sua quilha para a SUNAMAM. Em 1970 foi lançado para a Companhia de Navegação Marítima Netumar, Rio de Janeiro, e batizado como AMARALINA. Em 1970 foi concluída a sua construção. Em 1983 foi vendido para a Veritas Marine Ltd., Pireu, Grécia, e renomeado como FORUM EAGLE. Em 7 de junho de 1985 foi sucateado em Xingang, China.